O objetivo desta apresentação no encerramento deste
Seminário diz respeito à luta pela reconstrução de uma agenda democrática e sua
relação com a formação do magistério - questão específica que permeia este XIII
Seminário da ANFOPE. Como pano de fundo, está a questão da contribuição do
magistério e da escola para a garantia de direitos. Não deve passar sem que se
note que, garantir direitos, tem sido a luta dos trabalhadores pelo menos desde
a própria fundação da democracia liberal há cerca de 200 anos.
Como nos diz Wallerstein[2]: "O conceito de cidadão [na revolução francesa
do final do século 18] tinha a intenção de ser inclusivo - insistir que todas
as pessoas em um Estado, e não apenas algumas pessoas (o monarca, os
aristocratas) tinham o direito de ser parte, uma parte igual, do processo de
tomada coletiva de decisão na arena política".
Uma questão fica evidentemente: porque a democracia liberal
depois de seus 200 anos ainda lida mal com assegurar direitos? Por que nas
últimas décadas temos sido assediados pelo recrudescimento das propostas
liberais (agora na versão neoliberal) que primam pela competição meritocrática
como fundamento de um empreendedorismo individualista, ao invés de se falar em
“assegurar direitos”? Por que temos esta radicalização? E por que os
neoliberais não hesitam em fazer uma aliança, chamada pelo atual ministro da
Economia, de uma aliança ocasional com conservadores?
Estas questões, complexas, não podem ser respondidas
reduzindo-se sua complexidade a uma questão de “troca de governo” – ainda que
esta, na disputa política conte, em especial pelo fato de abrir ou fechar o
espaço para a resistência e luta – na dependência de quem assume o governo. Mas
é preciso ir além.
Por mais que uma resposta a estas questões não caiba no
tempo que dispomos, gostaria de deixar algumas considerações, ainda que não
conclusivas, como ponto inicial desta apresentação, porque elas orientam tanto
uma agenda democrática, como consequentemente o lugar da formação do magistério
nesta agenda.
Há um grande reconhecimento, hoje, da existência de uma
crise da democracia liberal que também nos remete a uma crise do estado de
direito que a sustenta[3].
Esta crise, que se arrasta desde o final do século 19 com momentos intercalados
de desenvolvimento motivados por três ondas de globalização que não conseguiram
estabilizar a lucratividade do capital, foi percebida pelos neoliberais no
início do século passado e motivou a criação de uma série de instrumentos
destinados a construir uma nova organização jurídica, um novo estado de direito
para a democracia liberal.
O trabalho mais sistemático sobre isso pode ser encontrado,
penso eu, em F. Hayek, em seu livro “Law, Legislation and Liberty”, publicado
em três volumes. Neste, sistematiza-se a proposta de um novo estado de direito,
na versão neoliberal. Um dos volumes do livro tem um nome significativo: “A
ilusão da justiça social”, a qual para o autor não existe.
Slobodian[4]
descreve como este neoliberalismo nasce vocacionado a construir uma nova ordem
jurídica em dois níveis: uma internacional – boa parte das organizações
internacionais como o OMC, Banco Mundial, entre outros, têm origem nesta
convicção da necessidade de uma ordem jurídica internacional que garanta os
interesses da acumulação capitalista; e outra nacional, uma ordem jurídica
local, interna aos países, que faça interface e garanta localmente seu
alinhamento à ordem internacional.
Este é o princípio operacional da globalização na fase
neoliberal. O que quero enfatizar aqui é a existência de um projeto claro de construção
de uma outra democracia. Este novo estado de direito tem a finalidade de
construir uma democracia limitada que resguarde os interesses do capital
em suas crises, reduzam direitos que consideram que devem ser obtidos não
através do Estado, mas através do mercado, meritocraticamente, de forma a
reduzir os custos da inclusão e contribuir para o aumento da lucratividade. O
neoliberalismo só seria colocado como única opção quando o keynesianismo dos
anos 50 entrou em crise na década de 80.
Como aponta Michael Robert[5], o
keynesianismo do pós-guerra sustentou a lucratividade global dos países do G20
em 10,3% em média, que foram atingidos em torno do ano de 1967, mas produziu em
seguida uma crise de lucratividade que derrubou este número para 6,6% em 1982,
quando então o capital recorreu ao neoliberalismo para sustentar taxas
melhores. Com o neoliberalismo, esta taxa de lucratividade subiu, mas subiu
pouco, atingindo o pico de apenas 7,8% por volta de 1997, ou seja, ainda menor
do que em 1967, inaugurando um período de longa depressão que se agravou com a
crise do financismo neoliberal em 2008 e em 2019 estava novamente em 6,8%, ou
seja, praticamente havia retrocedido aos 6,6% de 1982. E isso foi antes da
pandemia.
O que quero ilustrar com estes números é que as duas
soluções econômicas pensadas pelos economistas liberais para lidar com a crise
de lucratividade do capital, fracassaram – tanto o keynesianismo dos anos 50,
como o neoliberalismo dos anos 80. Em tempos de crise de lucratividade, não há
investimentos relevantes em desenvolvimento econômico, ampliando os problemas
sociais e motivando o rentismo, ou seja, a geração de capital fictício de alto
risco, aquele que explodiu em 2008.
O aumento dos problemas sociais decorrentes, por sua vez,
gera clamor de mudança. Desde meados do século 19, os chamados “conservadores
modernos” liderados por Edmund Burke perceberam que a sobrevivência destes
estava na dependência de aceitar uma combinação entre as inovações que se
apresentavam e os seus anseios de conservar certo acúmulo do passado que se
mostrava importante para eles. Para Burke, inovar não é reformar.
Wallerstein nos mostra como nos idos do século XIX, os
conservadores aceitaram o “convite” dos liberais para participar de sua
democracia liberal, isolando dessa forma os socialistas que reivindicavam
mudanças mais exigentes. Duzentos anos depois, em meio a novas e diferentes
crises, assistimos ao redor do mundo em vários países, esta aliança
conservadora/liberal se repetir para novamente isolar os anseios de mudança
mais radicais na organização social. Mas o faz, agora, com um novo projeto para
a democracia liberal, limitando ainda mais as possibilidades de implementar
aquela intencionalidade inclusiva da democracia liberal originária.
No entanto, apenas em menor escala temos debatido os motivos
para este desejo de mudança na democracia liberal proposta pela coalização de
conservadores e liberais, cada um com seus motivos específicos para tal. Não
temos falado da importante relação existente entre a chamada crise da
democracia liberal e as persistentes crises do capital com seus arranjos
políticos feitos para estancá-las e com isso perpetuar a era do capital como
lógica de organização das relações sociais existentes.
No entanto, de Marx a Dardot e Laval, o que se tem apontado,
cada um à sua moda, é a necessidade de se superar tais relações sociais que
estão na base de crises contemporâneas cada vez mais graves, que moldam
formulações econômicas e culturais que arrastam para a crise o liberalismo
centrista, emergente no século XIX e que alimenta uma crescente e inevitável
polarização.
O keynesianismo e sua expressão política social-democrática,
bem como o neoliberalismo meritocrático, fracassaram em seus propósitos de
melhorar a vida dos trabalhadores – cada um com seu modelo de inclusão. A
social-democracia propondo um Estado ativo na garantia da promoção dos direitos
de cidadania; o neoliberalismo propondo um processo de inclusão via mercado,
pelo acúmulo pessoal de mérito.
Seguindo a aguda percepção de Margaret Thatcher que dizia
não haver alternativa à implantação do neoliberalismo, podemos dizer que, hoje,
o capital está restrito a esta afirmação de Thatcher, tendo como alternativa ou
o retorno a alguma forma de social-democracia, ou a uma forma de combinação
desta com o neoliberalismo: todas sem condições de resolver a sua crise
fundamental, sobre a qual falaremos mais adiante. Não há perspectivas de que se
possa dar sustentabilidade à lógica do capital, a qual tenderá, portanto, a
tornar-se cada vez mais violenta. Mas a violência e a força, diziam os
clássicos, se resolve de imediato uma crise, só gera a necessidade de uma nova
violência no futuro.
Esta observação é importante porque nos preocupa, neste
momento, as falas que situam as dificuldades socioeconômicas pelas quais
passamos, como um problema predominantemente da conjuntura nacional e que
poderia, portanto, ser resolvido com ações de um governo local, ignorando que,
em parte, tais problemas têm origem na própria crise do capital e só serão de
fato equacionados com a substituição da atual forma de organização social
existente.
Sem colocar em cena este fator desestabilizador sistêmico, a
social-democracia sobrevivente se compromete com a produção de resultados que
dificilmente poderão ser obtidos, aumentando o grau de decepção com a política,
o que favorece, a médio prazo, o fortalecimento do populismo da direita
autoritária e seus radicalismos de ocasião contra o Estado e a própria
política.
É certo que somente um governo progressista pode e deve
colocar atenção na diminuição do sofrimento da classe trabalhadora, mas
minimizar a brutal crise do capital desmobiliza os trabalhadores para o
enfrentamento de uma longa batalha que é fruto dos problemas sistêmicos pelos quais
passamos. Neste cenário, só podemos entender um governo de oposição se ele tem
um forte componente de mobilização que denuncie as reais fontes do sofrimento
da população.
Neste cenário, ser otimista, uma necessidade de
sobrevivência, só é eficaz se nos afastarmos de fantasias voluntaristas geradas
pela ansiedade da falta de perspectivas concretas de sustentabilidade para o
desenvolvimento da humanidade em que nos colocou o capital, em um momento em
que no tabuleiro das guerras em curso, se discute o uso de armas táticas
nucleares pelas grandes potências. Não é hora para utopias. É hora de
“utopística”, ou seja, na definição de Wallerstein, é hora de examinarmos as
opções concretas que dispomos para o século XXI[6]. A crise
aprofundou-se ao longo do tempo, especialmente com as soluções neoliberais, e
suas várias dimensões (política, geopolítica, ambiental e outras) são derivadas
da mãe de todas as crises: a crise estrutural do capital[7] que atinge
diretamente a vida contemporânea.
Esta crise tem origem, por um lado, na própria lógica
existencial do capital que, como advertia Schumpeter nos idos da década de 40,
terá problemas não pelo seu fracasso, mas pelo seu próprio “sucesso”.
Esta lógica direciona a humanidade para o objetivo de ganhar
dinheiro para ganhar mais dinheiro, indefinidamente, e nenhum sistema social
pode operar por acumulação permanente sem destruir os seres humanos e o
ambiente.
Este sistema voltado para o lucro infinito, como bem notou
Marx[8],
cria uma contradição estrutural entre o aumento do capital investido em
tecnologia mais sofisticada na produção, e a consequente redução do capital
investido em contratação de mão de obra, sendo esta substituída por novas
tecnologias, gerando menos postos de trabalho ou postos mais simplificados e
mais baratos, mas que a longo prazo produz, como resumi anteriormente, uma
queda tendencial nas taxas médias globais de lucro e que, mesmo podendo ser
adiada, se fatores contrariantes forem acionados pelo capital, seus efeitos não
podem ser postergados para sempre. Onde entra tecnologia, sai gente e esta
gente não tem mais como ser reaproveitada em outros ramos, pois todos estão ou
serão submetidos à mesma lógica.
Acuado pela competição intercapitalista, intensifica-se este
processo de afastamento das pessoas da atividade produtiva direta, criando uma
tendência de redução da geração de valor, o qual para ser ampliado depende de trabalho vivo, de gente. As tecnologias
têm em seu interior trabalho morto
e ao serem introduzidas diminuem ou precarizam a participação do trabalho vivo
na produção, ou seja, contraditoriamente afastam os serem humanos do processo
da produção.
Para se perpetuar, o capital é obrigado, então, a pôr em
marcha uma série de medidas que contrariem esta tendência à queda das taxas
médias globais de lucro, entre as quais, destacam-se: a intensificação do
trabalho não pago e a imposição de salários mais baixos; a superpopulação de
trabalhadores desempregados ou subempregados – enfim a precarização extrema da
força de trabalho.
Para além das polêmicas teóricas que esta questão gera, o
que importa destacar aqui é que tais ações de sobrevida, no entanto, acabam por
aumentar as crises sociais e carregam alto poder de mobilização social,
estimulando crises sociais que o capital precisa conter, entre outras medidas,
reformulando o conceito de democracia liberal, tornando-a mais limitada e,
claro, controlando a educação da juventude.
Note-se, então, que a introdução de novas tecnologias no
processo de trabalho é uma necessidade intrínseca às crises do capitalismo. É
pela introdução de novas tecnologias que ele impulsiona a economia,
potencializa a lucratividade e reduz temporariamente o impacto das crises
econômicas. Em contraposição, na outra ponta, aumentam as crises sociais, a
miséria, os conflitos e, com isso, contraditoriamente, as reais possibilidades
de mobilização social. Este confronto também motiva a emergência das políticas
neoliberais e suas formas de conceber o Estado, bem como estimula o fortalecimento
da extrema direita e o desejo de um novo estado de direito que limite a
democracia liberal que passa a ser responsabilizada pelos problemas existentes.
Como consequência, ataca-se a ideia de um Estado inclusivo,
o qual, pelo menos até recentemente, era chamado periodicamente a intervir para
prover alguma compensação à permanente exploração a que os trabalhadores são
submetidos, criando políticas inclusivas.
Tratava-se de aliviar as tensões sociais. No entanto, mesmo
o pouco que se fez nestes momentos, acabou por levar a um aumento dos custos
fiscais decorrentes desta estratégia, agravado pelo baixo desempenho do capital
global.
Como aponta Wallerstein, as ações da social-democracia
destinadas a incluir mais gente, criaram mais contradição: uma maior inclusão
aumentava o tamanho do Estado e exigia mais impostos, derrubando a
competitividade e os lucros. O inverso, a não inclusão, diminuía o Estado,
reduzia impostos, permitia atender às demandas capitalistas, mas gerava mais
conflito social.
Tudo isso em um quadro em que o capitalismo precarizava
constantemente a força de trabalho a cada inovação tecnológica que introduzia
para postergar suas crises. Vender mais barato e ampliar mercados em meio à
crise, implicou em externalização de custos, desoneração do capital e
diminuição de impostos, desregulamentação dos mercados globais, o que é
incompatível com financiar a inclusão.
Este cenário rapidamente apresentado não estaria minimamente
completo se não incluíssemos os danos que o capital faz à ecologia global pelo
processo de acumulação ilimitado e pela externalização crescente do custo
ambiental. Aqui, nosso tempo acabou e as ações necessárias são imediatas. Na
medida que a acumulação não tem fim, cresce o garimpo de matérias primas, a
mineração, a extenuação da terra por fertilizantes, o desmatamento, entre
outras agressões sistemáticas à natureza que assistimos todos os dias.
Estas são algumas das motivações pelas quais, hoje, uma
coalisão de conservadores e liberais – cada um com seu projeto - tenta implementar
uma mudança no estado de direito, limitando o alcance da democracia liberal,
travando instituições que possam opor-se a tais mudanças, de forma a deter a
tomada de consciência do esgotamento da
ordem social proposta pelo capital. Neste contexto, em aliança com grandes
empresários que a financiam, esta coalisão implementou um agressivo programa de
divulgação de suas ideias através de organizações sociais, fundações privadas,
institutos, acadêmicos[9] e
até a criação de universidades dedicadas à sua difusão.
E claro, ela disputa a educação regular da pré-escola até a
pós-graduação. Uma disputa que visa destruir a educação pública de
responsabilidade do Estado transferindo-a para empresários e sacerdotes ou
delegando-a aos próprios pais na forma de ensino domiciliar – tudo regado a
dinheiro público que deveria estar financiando a escola pública. Está em jogo,
sim, a expansão de mercado, mas igualmente está em jogo o controle ampliado da
formação da juventude.
Conservadores e neoliberais têm um projeto e o estão
implementando em escala global, apesar de suas diferenças. Eles estão
radicalizando suas teses e nos forçam a defender uma democracia liberal pensada
há 200 anos e que não conseguiu levar a cabo suas intenções de inclusão e
bem-estar para todos. Neste processo, conservadores e neoliberais se apresentam
à população como se fossem “revolucionários” culpando as instituições atuais
pelos problemas que a população padece e os defensores da democracia liberal
passaram a ser tachados de representantes de algo considerado ser a fonte dos
problemas sociais.
Como romper esta armadilha? Esta luta exige, como aponta
Wallerstein[10], um
projeto de sociedade comprometido com a radicalização da igualdade e da
democracia, que se contraponha à radicalização excludente das teses dos
conservadores e liberais que pretendem uma perpetuação do sistema do lucro
baseado na lógica do capital, fonte real dos nossos problemas. O moderno é o
capital e suas crises, o pós-moderno é a superação do capital.
Isto significa que juntamente com defender a democracia
liberal como um patamar mínimo de democracia e bem-estar, porque se for menos
que isso entramos no campo da barbárie, devemos igualmente declará-la
insuficiente para os propósitos de uma humanização coletiva radical:
necessária, sim, mas insuficiente.
Mas qual a relação desta análise com a questão da formação
dos profissionais da educação, afinal o nosso tema? Se taticamente a democracia
liberal nos interessa, estrategicamente precisamos pensar além e pautarmos a
luta nos dois planos. Isso exige projetos concretos de superação do capital.[11]
As escolas, queiramos ou não, veiculam finalidades
educativas. Estamos formando a juventude agora. Tais finalidades educativas que
orientam todo o currículo são expectativas extraídas de uma determinada forma
de concebermos a sociedade que temos ou que desejamos. Quando pensamos,
portanto, na formação do magistério, é importante indagar, antes, que tipo de
sociedade queremos construir e, consequente, que tipo de escola precisamos para
isso, pois são estas decisões que orientam a própria formação do magistério.
Creio ter deixado claro, antes, que estamos vivendo uma
época que alguns teóricos entendem ser o ocaso do capital. Ninguém sabe quanto
tempo isso pode demorar, mas sabe-se que teremos que passar por ele e, como
alerta Wallerstein, não há nenhum fatalismo nisso já que não se pode assegurar
que a solução para o ocaso do capital seja melhor que o próprio capital. Isso
significa, portanto, que em meio as crises teremos que lutar e ao mesmo tempo construir
uma alternativa melhor.
Isto exige, então, uma visão crítica das finalidades
educativas que estão sendo impostas pelo sistema-mundo do capital às escolas e
demanda uma identificação de quais são as nossas finalidades educativas
destinadas a preparar, especialmente a juventude, para lutar e construir
alternativas. Isso deve ainda dar base para que se pense qual a forma e
conteúdo da organização escolar que precisamos, permitindo visualizar as
demandas necessárias para a formação do magistério[12].
É por isso que a educação é um campo perigoso na visão de
conservadores e liberais e tem que ser acompanhada de perto, sempre que
possível colocada fora do controle do Estado e nas mãos de agentes seguros
ideologicamente, como os empresários e os sacerdotes.
O percurso da política educacional envolve definir
finalidades educativas, pensar a organização do trabalho na escola e,
finalmente, pensar a formação do magistério. E com todo respeito ao trabalho e
à memória de Paulo Freire, os tempos são outros e precisamos, preservando os
elementos mais radicais de Freire, ir além. Esta é uma responsabilidade que é
nossa e que não podemos cobrar dele.
Em um quadro de crises recorrentes e cada vez mais graves,
qual o papel que os profissionais da educação são chamados a cumprir tendo como
horizonte a construção da democracia e a luta por uma referência
pós-capitalista?
Esta tarefa não pode ser enfrentada sem que tenhamos uma
compreensão das ações que o capital está colocando em curso nas escolas para
controlar os processos educativos. O neoliberalismo não é apenas um conjunto de
reformas econômicas. Ele é uma teoria sociopolítica, com bem demonstra
Biebricher[13].
Embora opere por transferência da atividade educativa para agentes confiáveis,
ele é mais do que os processos de privatização em curso. É um modo de vida.
Nos limites de nosso tempo, gostaria de explicitar apenas
dois núcleos conceituais que são importantes para entendermos este processo.
O primeiro núcleo refere-se ao avanço do que agora podemos
chamar, na esteira do conceito de Saviani[14] sobre a
pedagogia tecnicista, de um “neotecnicismo
digital” que, além da virtualização da ação pedagógica, se conecta com
a teoria da responsabilização por metas e com a teoria da escolha pública[15].
Juntas, elas reformulam os espaços educativos.
Pela teoria da responsabilização, apoiando-se no controle da
avaliação e nas novas tecnologias de informação e comunicação, amplia-se o
controle sobre os objetivos, conteúdos e processos educativos, incorporando no
trabalho pedagógico a virtualização dos processos.
Pela teoria da escolha pública, colocam-se em marcha
variados processos de privatização da educação (por dentro ou desde fora). Não
devemos nos iludir. Aqui, o objetivo não é “melhorar a escola pública”, mas
extinguir a escola pública a partir do deslocamento dos recursos públicos que a
financiam para setores confiáveis.
O segundo núcleo
conceitual diz respeito à meritocracia que
incorpora as finalidades educativas oriundas do padrão sócio-político
neoliberal, onde o indivíduo é colocado como o gestor da sua própria acumulação
de competências e habilidades, com as quais deve se apresentar ao mercado
concorrencial.[16] Com
esse objetivo, aparecem as “disciplinas” que procuram “ajudar” os jovens a
elaborar um “projeto de vida” e a se transformarem em supostos “empreendedores”
como se eles fizessem parte dos ganhadores do sistema e não fossem, de fato,
candidatos a trabalhadores precarizados. Um sofisticado processo de cooptação
dos trabalhadores.
O que está em jogo é introduzir na formação da
juventude, a lógica da concorrência e da meritocracia, estabelecendo que,
de agora em diante, cada um é responsável por si mesmo, hegemonizando
outra justificativa social – ou seja, da lógica da meritocracia, entendida como
uma hierarquia social construída pelo acúmulo de mérito pessoal.
Este contrato neoliberal, contrapondo-se a uma visão social
da liberdade, privatiza a liberdade como um fenômeno pessoal e individual,
não sendo relevante se as demais pessoas são ou não igualmente
livres. Nega-se a liberdade como um fenômeno social, coletivo e
emancipatório exercitado em ambiência democrática. Como consequência, nesta
visão, não há sociedade, mas sim indivíduos jogando o jogo da vida –
empreendedores e jogadores. Uma sociedade na qual todos “participam” segundo
seu próprio mérito e sorte.
É por isso que os neoliberais falam em ampliar a liberdade e
não em ampliar a democracia, pois esta implica em tomada de decisões coletivas.
Neste sentido, a tese pós-moderna de que o coletivo é um ente opressor é algo
que atende plenamente às necessidades do neoliberalismo, que enfatiza o
indivíduo e teme o coletivo organizado.[17]
A meritocracia esconde que, frente às crises constantes do
capital e às possibilidades crescentes de desemprego e de subemprego, esta
formulação permite que as elites blindem os melhores e mais significativos
postos de trabalho para si, criando uma exigência meritocrática que
somente elas, as elites, podem atender, fazendo uso de suas condições
socioeconômicas, como aponta Markovitz[18]. Com
isso, restringem a mobilidade social e explicam a desigualdade social
como opção pessoal ou “falta de empenho” pessoal.
Constrói-se na juventude, dessa forma, a ideia de que cada
um é responsável por si mesmo, minando a própria ideia de um Estado inclusivo
e, pelo oposto, fortalecendo a ideia de um Estado mínimo para o social e máximo
para o capital, criando-se a crescente ambiência social de violência e de vale
tudo concorrencial que estamos vivendo.
Para implementar este projeto, o capital precisa criar uma
nova materialidade nas escolas, fortalecendo as teses educacionais
neotecnicistas que levam a uma ampliação do controle técnico e político da
escola, fazendo uso da adição de tecnologias da informação e da comunicação
disponíveis (p. ex. ensino híbrido). Isso conduz à introdução de plataformas
de aprendizagem e sistemas informatizados de armazenamento de dados e
controle.
Este movimento faz parte da mercantilização da própria
“sociabilidade” em geral, como mostra Huws[19] , agora
também mediada por tecnologia, sob controle de grandes corporações transnacionais
– as big techs.
Nas palavras de Huws, mais aspectos da vida são agora
incluídos no mercado, ou pelos menos aqueles aspectos que interessam para gerar
lucro, e que antes se encontravam fora dele. Isso inclui “a biologia, arte e cultura, serviços públicos e a sociabilidade”
(p.7).
Neste processo de mudança, “os trabalhadores criativos foram
convertidos em “produtores de conteúdo” (p. 8). E continua: “A colonização da sociabilidade pelo mercado
não só gerou uma nova fonte de lucro, mas também penetrou na estrutura da vida
social [das pessoas], minando a base da futura solidariedade.” (p. 11)
Huws acrescenta que “a
comunicação social agora envolve, com efeito, o pagamento de um dízimo a essas
empresas [que fazem a mediação tecnológica] por parte de todas as pessoas ao
redor do mundo que tenha um contrato de telefone celular ou uma conexão à
internet em casa – um número que continua a crescer exponencialmente” (p.
13).
Como também salienta Weiner[20]: “[As
alterações globais] no trabalho dos
trabalhadores culturais e do conhecimento e aqueles do serviço público
envolvem: a intensificação ampliada do trabalho; a diminuição da autonomia e da
criatividade; a padronização dos processos de trabalho; e pressão para se
“desempenhar de acordo com padrões cada vez mais rigorosos estabelecidos de
cima para baixo, definidos em termos de protocolos, metas de desempenho e
padrões de qualidade” (p. 40).
O impacto destas concepções de alinhamento já se faz sentir
na educação brasileira com a edição das Bases Nacionais Comuns – seja a
Curricular, seja a de Formação de Professores com a finalidade de alinhar as
escolas e universidades. Têm a finalidade de estabelecer “padrões de cima para
baixo” combinados com “metas de desempenho” e avaliação.
Este aprisionamento das escolas afasta quaisquer
possibilidades de que a resistência a este processo seja feita a partir de
insurgências voluntaristas e mobilizações sem direção clara.[21]
Note-se aqui a presciência dos educadores da Comissão
Nacional de Reformulação dos Cursos de Formação dos Educadores que, nos idos de
1990, resolveram sistematizar a experiência de luta pela formação do
magistério, ocorrida entre 1975 e 1999 e que já sofria os efeitos iniciais das
políticas neoliberais, e optaram corretamente por consolidar seus avanços
transformando aquele movimento inicial, e de certa forma informal, em uma
associação, a ANFOPE, e seu plano de luta consubstanciado em uma Base Comum
Nacional para a formação, como âncora de uma Política Nacional de Formação dos
Educadores.
Este processo está registrado nos documentos dos encontros
nacionais realizados em 1988 e em 1990, respectivamente o 4º. e o 5º. Encontro,
e é interessante ver como os elementos da política neoliberal, que se ampliaram
ao longo destas últimas décadas, já eram debatidos, como aponta o documento de
1992, no 6º. Encontro da ANFOPE. Veja-se, por exemplo, o tópico “Algumas
reflexões sobre a crise de acumulação e suas implicações para o Brasil, a
escola e a formação do educador”, naquele documento.
Aqui peço licença para um breve excurso.
Nilda Alves, minha colega de luta, referiu-se a um documento
que ela chamou de brilhante escrito por mim para o 5º. Encontro, penso eu. A
bem da História, é preciso complementar e dizer, e isso cabe a mim, que este
documento brilhante não foi minha criação e que atuei como um mero “escriba”
que perambulava por este país em encontros e seminários estaduais ouvindo e
sistematizando o ouvido.
A criação da ANFOPE e seu documento, se brilhante foi, deve
isso à qualidade da atuação daqueles que lutaram entre 1975 e 1999 nos Estados
e que produziram conhecimento e perceberam a fragilidade de se manter aquele
movimento sem uma estrutura organizacional formal e sem lastro financeiro. Cada
encontro realizado implicava em passar o chapéu em várias universidades para
que pudesse ser realizado, criando uma dependência que punha em risco o
processo de luta. Creio que Nilda Alves concordará com esta minha avalição.
Mas, voltemos ao nosso tema.
A presciência destes lutadores permitiu que em 90 se
consubstanciassem os avanços teóricos e práticos obtidos no período precedente
e se estabelecesse um “instrumento de luta”: a base comum nacional, já
percebendo a chegada das políticas neoliberais.
Esta base deveria ser entendida como uma “pauta mínima
comum”, um instrumento de resistência contra a degradação da profissão, que
poderia ser complementada pelas variadas instituições de ensino a partir de
suas especificidades. Não havia, nela, uma intenção normativa de ordem
curricular. Este instrumento de luta continuaria como uma referência e
atravessaria as décadas seguintes fornecendo uma ancoragem para os embates e
para a elaboração de uma Política Nacional de Formação dos Educadores de
caráter não só nacional, mas também global, atingindo todas as instituições
formadoras (Escola Normal, Licenciatura em Pedagogia e demais Licenciaturas).
Portanto, ao recusar a Base Nacional Comum de Formação do
MEC, a ANFOPE o faz a partir de sua Base Comum Nacional e de seu entendimento
do que seja uma Política Nacional de Formação dos Educadores e, neste sentido,
diferencia-se de outras posições que defendem a ausência completa de qualquer
Base.
As políticas públicas neoliberais agora estão em alta e nada
permite afirmar com segurança que não vão continuar a moldar a educação
brasileira – apesar do fracasso econômico do neoliberalismo. Agrava-se o
processo de luta face ao aprisionamento das escolas por estas políticas que
agora dão um grande salto com a introdução do chamado ensino híbrido. Por ele,
plataformas on line de aprendizagem expropriam as funções básicas do professor
convertendo seu trabalho vivo em trabalho morto dentro de softwares comandados
por algoritmos.
Esta desqualificação da formação do professor, abre as
portas também para a desprofissionalização da atividade do magistério e, por
este caminho, destroem-se suas entidades associativas, especialmente os
sindicatos, deixando cada professor à sua própria sorte. Este processo, forma a
base da uberização do magistério, já avançado no setor privado.
Agora, o controle da escola é possível à distância acabando
com o âmbito privativo da relação professor-estudante na sala de aula, antes
sob autoria destes. O conteúdo desta relação é expropriado, mercantilizado e
posto sob controle virtual mediado por tecnologias. Uma série de controles são
potencializados com a acessibilidade imediata ao processo de ensino que ocorre
no interior de uma sala de aula.
Isso torna crítico que se lute contra uma concepção
tecnicista da educação voltada para a supremacia do controle de processos e
técnicas sobre o professor e que necessita para ser operacionalizada,
simplificar e estreitar a atividade educativa.
Este são os desafios que teremos que pela frente.
Um processo de enfrentamento deste cenário de aprisionamento
das escolas no contexto de uma crise de acumulação persistente do capital,
exige que avancemos em nossa conceituação do que deva ser uma educação com
qualidade social que humanize tanto o ser humano como a sua relação com a
natureza, em nosso tempo.
Seu horizonte, no entanto, é a construção e o exercício de
um novo padrão sociopolítico que nos mobilize, por contra-regulação, para
caminharmos em direção a uma sociedade pós-capitalista.
Não haverá qualidade social mais humana para todos sob o
capital. Não há como tornar o capital mais humano, mais humanizado. Sua lógica
é a da concorrência e da competição sem limites, que vai se agravando pelas
crises sucessivas.
Portanto, no entendimento do que seja “qualidade social”, a
palavra-chave é “social”. É ela que qualifica a qualidade. Mas ela não é
neutra. Isso significa que a qualidade social deve ganhar sentido
como compreensão e superação das relações sociais vigentes, na compreensão
das implicações éticas e filosóficas destas relações sociais portadoras de
desigualdades objetivas e de desumanidade.
Vale dizer que são as relações sociais entre as pessoas as
portadoras de sentidos de humanização ou desumanização, são portadoras de
reconhecimento ou de exclusão, pois tais relações expressam o próprio
processo de produção da vida na sociedade atual.[22] Portanto,
esclarecer as relações sociais vigentes (e sua mutação histórica) é essencial,
não só como uma dialética substantiva, mas inseridas em um projeto histórico de
superação da era do capital.
Humanizar a educação significa, então, fazer uma crítica das
atuais relações sociais e, dada a impossibilidade das atuais relações sociais
irem além da exploração dos seres humanos e da natureza, isso também significa,
por oposição, lutar e construir novas relações que radicalizem a igualdade e a
democracia para além da democracia liberal vigente, incapaz de produzir
humanização suficiente para todos. Como afirma Shulgin[23], a luta
não é nosso desejo, é uma imposição que os que querem deter o desenvolvimento
histórico nos colocam. Não é nossa escolha e nem algo para ser comemorado - não
se pode obter tudo só pela luta. “É preciso também saber construir.”
A democracia liberal que somos obrigados a defender hoje dos
ataques neoliberais e de conservadores é bom lembrar, é apenas um patamar
mínimo de democracia e sua defesa só faz sentido se for para superarmos esta
democracia por uma democracia de tipo superior que radicalize a igualdade e a
democracia participativa.
Humanização, portanto, não é uma categoria abstrata, mas é o
exercício concreto de humanidade que se dá na organização da vida material para
além do reconhecimento do outro e da diversidade e que conforma as relações
entre as pessoas. A fonte de desumanização contemporânea está nas relações
sociais que sustentam a geração de valor sob o capital, sempre relações de
exploração e dominação.
Sem a superação do capital, não há ampliação possível da
humanização, entendida esta como uma humanização coletiva. Portanto, falar em
qualidade social mais humana sem identificar a origem da desumanidade nas
próprias relações sociais capitalistas, não indica qual o alvo de luta e nem as
formas de luta. É preciso assumir que as lutas atuais são, então, lutas
anticapitalistas, lutas pelo esgotamento e superação das relações sociais
desumanizadoras criadas pela vida sob o capital – incluídas aí as desigualdades
de gênero, de classe, de raça entre outras[24]. É neste
campo que a definição das finalidades da educação que nos interessam têm que
ser colocadas.
As consequências disso para a educação são claras. Ou seja,
uma educação com qualidade social e mais humana é aquela que – guiando-se por
uma matriz formativa mais ampla, que inclui o acesso ao conhecimento acumulado
e, portanto, às ciências e às artes, e guiando-se igualmente pela crítica da
organização interna das escolas (que na escola atual reproduz os princípios da
organização social verticalizada) – é uma qualidade social que prepara as lutas
por uma sociedade de outro tipo, onde a igualdade e uma democracia de tipo
superior, portanto baseada na participação e construção coletivas, apontam para
um tipo de vida para além da geração e acumulação de valor ilimitado e
desigual, e ensaiam novas relações sociais superadoras da era do capital, nos
limites possíveis da luta.
Educar para a humanização, então, para além do necessário
domínio do conhecimento das ciências e das artes, é ter uma escola que permita
que os estudantes possam construir esta crítica das relações sociais vigentes e
participar, já durante sua formação, do exercício de relações democráticas
participativas, para além da representação, com ênfase no trabalho coletivo e
com participação na construção da própria vida escolar. Isso permitirá que a
juventude seja formada com uma forte disposição para valorizar uma atuação
democrática, igualitária e participativa. Uma escola como esta já existe,
concretamente, nos movimentos sociais[25].
Penso que estes são alguns dos elementos que podem dar base
à contribuição da ANFOPE e das demais parceiras deste evento, para a construção
de uma agenda que vise a retomada da democracia, nos termos aqui defendidos.
Não exaure as questões, mas dado que o âmbito da ANFOPE é o da formação dos
profissionais da educação, outros aspectos certamente serão tratados por outras
entidades que, pela sua especificidade, podem melhor equacionar aqueles
aspectos.
Uma agenda para a ANFOPE faz interface com a luta geral da
área da educação e da sociedade, mas aqui me limito aos aspectos que afetam
mais diretamente a formação dos profissionais da educação e seu exercício na
profissão.
1. A ANFOPE deve promover a formação de um magistério comprometido com a modificação das práticas escolares atuais, na perspectiva de que o relacionamento com as novas gerações que chegam às escolas seja cada vez mais baseado na gestão democrática da vida da escola e da sociedade. Democratizar as relações internas entre professores, estudantes e a própria gestão das escolas é um exercício inadiável para induzir o avanço de processos democráticos na sociedade como um todo a partir da formação dos estudantes, e ajudar a conter políticas antidemocráticas e de discriminação. Isso não garante a transformação social, mas constitui uma base formativa essencial para a juventude.
Frente ao avanço das políticas
autoritárias, meritocráticas e individualistas da coalisão liberal/conservadora
é fundamental estimular as escolas a desenvolver um padrão sócio-político
alternativo, voltado para a auto-organização dos estudantes, tanto pessoal como
coletiva, que aponte para a solidariedade e prepare processos superiores de
democratização participativa. Esta tarefa de exercício
democrático-participativo é urgente e se soma à tarefa imprescindível do
domínio do conhecimento sistematizado.
2. A ANFOPE deve lutar para que as agendas das entidades da educação proponham e consolidem instrumentos legais que alicercem formas de gestão democrática nos sistemas e nas escolas como caraterística distintiva do próprio conceito de escola pública.
Isso inclui fortalecer os Conselhos
Municipais de Educação; os Fóruns Municipais de Educação e o Conselho de
Acompanhamento do FUNDEB, bem como valorizar os Conselhos das Escolas – entre
outros instrumentos de gestão democrática – de forma a definir como “escola
pública” aquela, e apenas aquela, que é gerida por estes instrumentos públicos
de gestão e atende a todas as exigências legais das escolas públicas
(estatais).
Não pode ser entendida como “escola pública” aquela que não
se subordina às regras e instrumentos de gestão democrática. Assim, não estão
incluídas nesta denominação as escolas privadas ou escolas públicas de gestão
privatizada - em suas várias formas -, as quais respondem às suas respectivas
mantenedoras e, portanto, não têm uma gestão pública e democrática nos termos
definidos.
À escola pública, assim definida, devem ser exclusivamente
destinados os recursos públicos, pois ao serem facilitados às escolas privadas
ou de gestão privada, desfinanciam a escola pública e prejudicam a qualidade da
educação dos estudantes nela matriculados.
3. A ANFOPE deve condenar todos os processos de privatização da educação pública em suas variadas formas (vouchers, contratos de gestão, contratos de impacto social e parcerias público-privadas) e apontar para o fortalecimento da educação pública de gestão pública. Público e privado são categorias mutuamente excludentes. Por definição, público visa o bem público, comum, e privado visa o bem particular daqueles que são proprietários ou organizadores. O privado tem “por obrigação” gerar lucro (mesmo que sob a forma de organizações “sem fins lucrativos” – uma pura questão de contabilidade), o público visa garantir direitos e atender ao interesse público e não de acionistas.
4. Também deve-se incluir em sua agenda a luta pela eliminação de testes censitários de avaliação de larga escala (nacionais e estaduais) na educação, que levem a ranqueamentos ou a consequências associadas a meritocracia (bônus ou punições) para professores e estudantes. As avaliações de larga escala, quando existirem, devem ser sempre amostrais e nunca censitárias.
5. Uma das medidas que mais potencializam a ação do magistério em sua tarefa de educar os estudantes é a diminuição do número de alunos em sala de aula, a começar por escolas em áreas de risco. Deve-se, portanto, apontar para a redução do tamanho das turmas de estudantes nas escolas e não para a sua massificação a partir da introdução de plataformas de aprendizagem on line.
6. Em defesa dos pequeninos, a ANFOPE deve apoiar as entidades que lutam por recusar processos de escolarização na educação infantil que antecipem a educação fundamental e desrespeitam o desenvolvimento infantil, bem como deve recusar a introdução de plataformas on line de aprendizagem especialmente nesta fase e impedir avaliações de aprendizagem que não sejam as conduzidas pelos próprios professores e escolas.[26]
7. A educação deve ser um espaço de diversidade de ideias não sujeito a mordaças que visem eliminar a liberdade intelectual dos docentes e estudantes durante seu percurso formativo. Neste sentido, a ANFOPE deve defender a eliminação de dispositivos que permitam a militarização de escolas públicas e apoiar a criação de mecanismos efetivos de proteção da democracia no espaço escolar.
8. Igualmente deve opor-se aos processos de padronização da educação os quais, associados à avaliação de larga escala censitária, conduzem à eliminação de experiências inovadoras e à imposição de padrões culturais arbitrários que marginalizam, excluem e além disso, que destroem especificidades de culturas locais, em especial na educação dos povos do campo.
9. A ANFOPE deve lutar pela revogação da Base Nacional Comum Curricular atual (fundamental e médio), bem como da Base Nacional Comum de Formação do magistério do MEC, substituindo-as por outras construídas democraticamente com base em um conceito de formação humana alargado e não restrito a competências e habilidades, e ainda propor a revogação da Lei da Reforma do Ensino Médio. Como aporte a este processo de democratização das diretrizes da formação dos profissionais da educação, a ANFOPE deve lutar para garantir que sua concepção de Base Comum Nacional e sua Política Nacional de Formação de Educadores esteja contemplada na formação inicial e continuada.
10. Deve ainda, em conexão com os sindicatos e confederações do magistério, lutar contra a desprofissionalização dos profissionais da educação, assegurando condições adequadas para sua formação teórica e prática nos termos de sua Base Comum Nacional, bem como apoiar a luta pela obrigatoriedade do pagamento do piso salarial.
11. Como mecanismo de proteção da juventude, a ANFOPE deve lutar pela regulamentação das condições e do número máximo de horas que os estudantes podem ser envolvidos em plataformas digitais de aprendizagem nas escolas (tablet, computador, celular, etc.), a partir de pesquisas e requisitos internacionais de proteção à saúde e bem-estar.
12. Finalmente, deve lutar pela exigência de transparência por parte dos produtores de plataformas de aprendizagem online em relação aos objetivos, planejamento dos algoritmos decisórios, certificação de ausência de eventuais processos internalizados de exclusão e/ou discriminação (conceitual ou práticos) ocultos em algoritmos e em trilhas internas de aprendizagens, bem como exigir evidências em estudos em campo.
Estes pontos aqui reunidos elencam o
que considero ser algumas das contribuições possíveis da ANFOPE e do magistério
em exercício neste momento, para alavancar uma retomada democrática rumo à
superação da democracia liberal.
[1] Professor Titular aposentado da Faculdade
de Educação da UNICAMP. Texto baseado em apresentação feita na sessão de
encerramento do XIII Seminário Nacional da ANFOPE – Associação Nacional pela
Formação dos Profissionais da Educação - em setembro de 2022. Disponível
em www.avaliaçãoeducacional.com.br.
Reprodução autorizada.
[2]
Wallerstein, I. (2011) The modern Word-system IV: centrist liberalism
triumphant, 1789-1914. Berkeley: University of California Press.
[3]
Eatwell, R. and Goodwin, M. (2018) National Populism: the revolt against
liberal democracy. Penguin Books: UK; Deneen, P. (2019) Why Liberalism failed.
New Haven and London: Yale University Press. (Há tradução em português.)
[4]
Slobodian, Q. (2018) Globalists: the end of the empire and the birth of
neoliberalism. Cambridge: Harvard Univesity Press. Já há tradução no Brasil.
[5]
Roberts, M. (2022) A world rate of profit: important new evidence. Disponível em https://thenextrecession.wordpress.com/2020/07/25/a-world-rate-of-profit-a-new-approach/ ; Roberts, M. (2018). Marx 200: a review of Marx's economics 200
years after his birth. London: Lulu.com Ed.; Roberts, M. (2016).
The long depression: how it happened, why
it happened and what happens next. Chicago: Haymarket Books; Carchedi, G.
and Roberts, M. (2018) World in Crisis: a global analysis of Marx’s law of
profitability. Chicago:
Haymarket Books.
Ver também: Prado, E. (2022) A
estagnação e o futuro da economia capitalista no Brasil. Disponível em https://eleuterioprado.blog/2022/01/30/a-estagnacao-e-o-futuro-da-economia-capitalista-no-brasil/.
[6] Wallerstein, I. (1998). Utopística o las
opciones históricas del siglo XXI. México: Siglo XXI.
[7] Mészáros, I. (2009). A crise estrutural
do capital. São Paulo: Boitempo; Streeck, W. (2016). How will
capitalism end? Essays on a failing system. London: Verso; Wallerstein, I.;
Collins, R.; Mann, M.; Derluguian, G. and Calhoun, C. (2013) Does Capitalism have
a future? New York: Oxford University Press.
[8] Marx,
K. (1984) O Capital. Vol. III, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural. Ver Seção III.
[9] Ver a conexão dos irmãos Koch com o
desenvolvimento da teoria da escolha em MacLean, N. (2017) Democracy in Chains:
The Deep History of the Radical Right’s Stealth Plan for America”. New York:
Penguin.
[10] Wallerstein, I. (1998), Idem; Wallerstein, I. (2002) Após o
liberalismo: em busca da reconstrução do mundo. Petrópolis: Vozes.
[11] A discussão aqui está focada na questão
da escola e seus profissionais como local de disputa, aprisionado que está pela
coalisão conservadora/liberal. Não se examinam outros aspectos da luta.
[12] Ver Shulgin, V. (2022) Fundamentos da
educação social. SP: Expressão Popular.
[13]
Biebricher, T. (2018) The political theory of Neoliberalism. Stanford: Stanford
University Press.
[14]
Saviani, D. (1983). Escola e
democracia. São Paulo: Cortez Ed./Autores Associados. Ver também Freitas, L. C.
(1992). Conseguiremos escapar do neotecnicismo? Em M. B. Soares, S. Kramer,
& M. Ludke, Escola Básica. Anais da VI Conferência Brasileira de Educação
(Vol. I, pp. 147-157). Campinas (SP): Papirus.
[15] Analiso o impacto destas duas vertentes
em Freitas, L. C. (2018) A reforma empresarial da educação: nova direita,
velhas ideias. São Paulo: Expressão Popular.
[16] Ver Chaui, M. (14 de setembro de 2018).
Seminário Internacional Ameaças à Democracia e à Ordem Multipolar. Fonte:
Fundação Perseu Abramo: https://youtu.be/QDDVZsU2AvU .
[17] A apropriação das teses pós-modernas pelo
conservadorismo pode ser encontrada nos estudos de McManus, M. (2020) What is
post-modern conservatism? Essays on our hugely tremendous times. UK:
Zero Books; e McManus, M. (2020) The rise of post-modern conservatism:
neoliberalism, post-modern culture and reactionary politics. Vancouver:
Palgrave Macmillan.
[18]
Markovits, D. (2019) The meritocracy trap: How America’s Foundational Myth
Feeds Inequality, Dismantles the middle class, and devours the elite. New York: Penguin Press. Há tradução
disponível. Ver também Sandel, M. J. (2020) A tirania do mérito: o que
aconteceu com o bem comum? Rio: Civilização Brasileira.
[19] Huws, U. (2014). Labor in the global digital economy. New
York: Monthly Review Press.
[20]
Weiner, L. (2021) Heads up! Chins down! Resisting the New Bipartisan Neoliberal
Project in Education. New
Politics. Disponível em https://newpol.org/heads-up-chins-down-resisting-the-new-bipartisan-neoliberal-project-in-education/
[21] O pós-modernismo é expressão da lógica
cultural deste capitalismo tardio ancorado no relativismo (muito bem captado
pela direita conservadora e liberal nos seus “fake news”) e que a reduziu “à
doxa televisiva e, mais recentemente, das redes sociais” (Silva, 2022: in
Azzarà, 2022). Ver: Azzará, S. G. Adeus
ao pós-modernismo: populismo e hegemonia na crise da democracia moderna.
Florianópolis: Insular; Jameson, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do
capitalismo tardio. São Paulo: Atica; McManus, M. (2020) The rise of
post-modern conservatism: neoliberalism, post-modern culture and reactionary
politics. Vancouver: Palgrave
Macmillan.
[22] Rubin, I. I. (1980) A teoria marxista do
valor. São Paulo: Brasiliense.
[23] Shulgin, V. (2022). Idem.
[24] Aqui será necessário vencer o viés
pós-moderno que desgarra a questão das diferenças examinando-as fora dos
limites estruturais impostos pelo capital, até porque o próprio neoliberalismo
em sua versão “light” e da “terceira via” já incorporou este debate da
diversidade. Ver sobre isso: Fraser, N. (2019) The Old Is Dying and
the New Cannot Be Born: From Progressive Neoliberalism to Trump and Beyond. New York: Verso; Oliveira, S. B. (2022)
Contribuições de Sharon Gewirtz para uma análise das políticas educacionais
baseada na justiça social. Disponível em http://www.curriculosemfronteiras.org/vol22articles/oliveira.pdf .
[25] Ver Caldart, R. S. e outros (2014).
Escola em Movimento. São Paulo: Expressão Popular.
[26] Ver Desmurget, M. (2022) A fábrica de
cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo:
Vestigio.
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