sábado, 3 de junho de 2023

QUAL AGENDA PARA QUAL DEMOCRACIA: o papel da escola e seus profissionais Luiz Carlos de Freitas[1]

 


O objetivo desta apresentação no encerramento deste Seminário diz respeito à luta pela reconstrução de uma agenda democrática e sua relação com a formação do magistério - questão específica que permeia este XIII Seminário da ANFOPE. Como pano de fundo, está a questão da contribuição do magistério e da escola para a garantia de direitos. Não deve passar sem que se note que, garantir direitos, tem sido a luta dos trabalhadores pelo menos desde a própria fundação da democracia liberal há cerca de 200 anos.

Como nos diz Wallerstein[2]: "O conceito de cidadão [na revolução francesa do final do século 18] tinha a intenção de ser inclusivo - insistir que todas as pessoas em um Estado, e não apenas algumas pessoas (o monarca, os aristocratas) tinham o direito de ser parte, uma parte igual, do processo de tomada coletiva de decisão na arena política".

Uma questão fica evidentemente: porque a democracia liberal depois de seus 200 anos ainda lida mal com assegurar direitos? Por que nas últimas décadas temos sido assediados pelo recrudescimento das propostas liberais (agora na versão neoliberal) que primam pela competição meritocrática como fundamento de um empreendedorismo individualista, ao invés de se falar em “assegurar direitos”? Por que temos esta radicalização? E por que os neoliberais não hesitam em fazer uma aliança, chamada pelo atual ministro da Economia, de uma aliança ocasional com conservadores?

Estas questões, complexas, não podem ser respondidas reduzindo-se sua complexidade a uma questão de “troca de governo” – ainda que esta, na disputa política conte, em especial pelo fato de abrir ou fechar o espaço para a resistência e luta – na dependência de quem assume o governo. Mas é preciso ir além.

Por mais que uma resposta a estas questões não caiba no tempo que dispomos, gostaria de deixar algumas considerações, ainda que não conclusivas, como ponto inicial desta apresentação, porque elas orientam tanto uma agenda democrática, como consequentemente o lugar da formação do magistério nesta agenda.

Há um grande reconhecimento, hoje, da existência de uma crise da democracia liberal que também nos remete a uma crise do estado de direito que a sustenta[3]. Esta crise, que se arrasta desde o final do século 19 com momentos intercalados de desenvolvimento motivados por três ondas de globalização que não conseguiram estabilizar a lucratividade do capital, foi percebida pelos neoliberais no início do século passado e motivou a criação de uma série de instrumentos destinados a construir uma nova organização jurídica, um novo estado de direito para a democracia liberal.

O trabalho mais sistemático sobre isso pode ser encontrado, penso eu, em F. Hayek, em seu livro “Law, Legislation and Liberty”, publicado em três volumes. Neste, sistematiza-se a proposta de um novo estado de direito, na versão neoliberal. Um dos volumes do livro tem um nome significativo: “A ilusão da justiça social”, a qual para o autor não existe.

Slobodian[4] descreve como este neoliberalismo nasce vocacionado a construir uma nova ordem jurídica em dois níveis: uma internacional – boa parte das organizações internacionais como o OMC, Banco Mundial, entre outros, têm origem nesta convicção da necessidade de uma ordem jurídica internacional que garanta os interesses da acumulação capitalista; e outra nacional, uma ordem jurídica local, interna aos países, que faça interface e garanta localmente seu alinhamento à ordem internacional.

Este é o princípio operacional da globalização na fase neoliberal. O que quero enfatizar aqui é a existência de um projeto claro de construção de uma outra democracia. Este novo estado de direito tem a finalidade de construir uma democracia limitada que resguarde os interesses do capital em suas crises, reduzam direitos que consideram que devem ser obtidos não através do Estado, mas através do mercado, meritocraticamente, de forma a reduzir os custos da inclusão e contribuir para o aumento da lucratividade. O neoliberalismo só seria colocado como única opção quando o keynesianismo dos anos 50 entrou em crise na década de 80.

Como aponta Michael Robert[5], o keynesianismo do pós-guerra sustentou a lucratividade global dos países do G20 em 10,3% em média, que foram atingidos em torno do ano de 1967, mas produziu em seguida uma crise de lucratividade que derrubou este número para 6,6% em 1982, quando então o capital recorreu ao neoliberalismo para sustentar taxas melhores. Com o neoliberalismo, esta taxa de lucratividade subiu, mas subiu pouco, atingindo o pico de apenas 7,8% por volta de 1997, ou seja, ainda menor do que em 1967, inaugurando um período de longa depressão que se agravou com a crise do financismo neoliberal em 2008 e em 2019 estava novamente em 6,8%, ou seja, praticamente havia retrocedido aos 6,6% de 1982. E isso foi antes da pandemia.

O que quero ilustrar com estes números é que as duas soluções econômicas pensadas pelos economistas liberais para lidar com a crise de lucratividade do capital, fracassaram – tanto o keynesianismo dos anos 50, como o neoliberalismo dos anos 80. Em tempos de crise de lucratividade, não há investimentos relevantes em desenvolvimento econômico, ampliando os problemas sociais e motivando o rentismo, ou seja, a geração de capital fictício de alto risco, aquele que explodiu em 2008.

O aumento dos problemas sociais decorrentes, por sua vez, gera clamor de mudança. Desde meados do século 19, os chamados “conservadores modernos” liderados por Edmund Burke perceberam que a sobrevivência destes estava na dependência de aceitar uma combinação entre as inovações que se apresentavam e os seus anseios de conservar certo acúmulo do passado que se mostrava importante para eles. Para Burke, inovar não é reformar.

Wallerstein nos mostra como nos idos do século XIX, os conservadores aceitaram o “convite” dos liberais para participar de sua democracia liberal, isolando dessa forma os socialistas que reivindicavam mudanças mais exigentes. Duzentos anos depois, em meio a novas e diferentes crises, assistimos ao redor do mundo em vários países, esta aliança conservadora/liberal se repetir para novamente isolar os anseios de mudança mais radicais na organização social. Mas o faz, agora, com um novo projeto para a democracia liberal, limitando ainda mais as possibilidades de implementar aquela intencionalidade inclusiva da democracia liberal originária.

No entanto, apenas em menor escala temos debatido os motivos para este desejo de mudança na democracia liberal proposta pela coalização de conservadores e liberais, cada um com seus motivos específicos para tal. Não temos falado da importante relação existente entre a chamada crise da democracia liberal e as persistentes crises do capital com seus arranjos políticos feitos para estancá-las e com isso perpetuar a era do capital como lógica de organização das relações sociais existentes.

No entanto, de Marx a Dardot e Laval, o que se tem apontado, cada um à sua moda, é a necessidade de se superar tais relações sociais que estão na base de crises contemporâneas cada vez mais graves, que moldam formulações econômicas e culturais que arrastam para a crise o liberalismo centrista, emergente no século XIX e que alimenta uma crescente e inevitável polarização.

O keynesianismo e sua expressão política social-democrática, bem como o neoliberalismo meritocrático, fracassaram em seus propósitos de melhorar a vida dos trabalhadores – cada um com seu modelo de inclusão. A social-democracia propondo um Estado ativo na garantia da promoção dos direitos de cidadania; o neoliberalismo propondo um processo de inclusão via mercado, pelo acúmulo pessoal de mérito.

Seguindo a aguda percepção de Margaret Thatcher que dizia não haver alternativa à implantação do neoliberalismo, podemos dizer que, hoje, o capital está restrito a esta afirmação de Thatcher, tendo como alternativa ou o retorno a alguma forma de social-democracia, ou a uma forma de combinação desta com o neoliberalismo: todas sem condições de resolver a sua crise fundamental, sobre a qual falaremos mais adiante. Não há perspectivas de que se possa dar sustentabilidade à lógica do capital, a qual tenderá, portanto, a tornar-se cada vez mais violenta. Mas a violência e a força, diziam os clássicos, se resolve de imediato uma crise, só gera a necessidade de uma nova violência no futuro.

Esta observação é importante porque nos preocupa, neste momento, as falas que situam as dificuldades socioeconômicas pelas quais passamos, como um problema predominantemente da conjuntura nacional e que poderia, portanto, ser resolvido com ações de um governo local, ignorando que, em parte, tais problemas têm origem na própria crise do capital e só serão de fato equacionados com a substituição da atual forma de organização social existente.

Sem colocar em cena este fator desestabilizador sistêmico, a social-democracia sobrevivente se compromete com a produção de resultados que dificilmente poderão ser obtidos, aumentando o grau de decepção com a política, o que favorece, a médio prazo, o fortalecimento do populismo da direita autoritária e seus radicalismos de ocasião contra o Estado e a própria política. 

É certo que somente um governo progressista pode e deve colocar atenção na diminuição do sofrimento da classe trabalhadora, mas minimizar a brutal crise do capital desmobiliza os trabalhadores para o enfrentamento de uma longa batalha que é fruto dos problemas sistêmicos pelos quais passamos. Neste cenário, só podemos entender um governo de oposição se ele tem um forte componente de mobilização que denuncie as reais fontes do sofrimento da população.

Neste cenário, ser otimista, uma necessidade de sobrevivência, só é eficaz se nos afastarmos de fantasias voluntaristas geradas pela ansiedade da falta de perspectivas concretas de sustentabilidade para o desenvolvimento da humanidade em que nos colocou o capital, em um momento em que no tabuleiro das guerras em curso, se discute o uso de armas táticas nucleares pelas grandes potências. Não é hora para utopias. É hora de “utopística”, ou seja, na definição de Wallerstein, é hora de examinarmos as opções concretas que dispomos para o século XXI[6]. A crise aprofundou-se ao longo do tempo, especialmente com as soluções neoliberais, e suas várias dimensões (política, geopolítica, ambiental e outras) são derivadas da mãe de todas as crises: a crise estrutural do capital[7] que atinge diretamente a vida contemporânea.

Esta crise tem origem, por um lado, na própria lógica existencial do capital que, como advertia Schumpeter nos idos da década de 40, terá problemas não pelo seu fracasso, mas pelo seu próprio “sucesso”.

Esta lógica direciona a humanidade para o objetivo de ganhar dinheiro para ganhar mais dinheiro, indefinidamente, e nenhum sistema social pode operar por acumulação permanente sem destruir os seres humanos e o ambiente.

Este sistema voltado para o lucro infinito, como bem notou Marx[8], cria uma contradição estrutural entre o aumento do capital investido em tecnologia mais sofisticada na produção, e a consequente redução do capital investido em contratação de mão de obra, sendo esta substituída por novas tecnologias, gerando menos postos de trabalho ou postos mais simplificados e mais baratos, mas que a longo prazo produz, como resumi anteriormente, uma queda tendencial nas taxas médias globais de lucro e que, mesmo podendo ser adiada, se fatores contrariantes forem acionados pelo capital, seus efeitos não podem ser postergados para sempre. Onde entra tecnologia, sai gente e esta gente não tem mais como ser reaproveitada em outros ramos, pois todos estão ou serão submetidos à mesma lógica.

Acuado pela competição intercapitalista, intensifica-se este processo de afastamento das pessoas da atividade produtiva direta, criando uma tendência de redução da geração de valor, o qual para ser ampliado depende de trabalho vivo, de gente. As tecnologias têm em seu interior trabalho morto e ao serem introduzidas diminuem ou precarizam a participação do trabalho vivo na produção, ou seja, contraditoriamente afastam os serem humanos do processo da produção.

Para se perpetuar, o capital é obrigado, então, a pôr em marcha uma série de medidas que contrariem esta tendência à queda das taxas médias globais de lucro, entre as quais, destacam-se: a intensificação do trabalho não pago e a imposição de salários mais baixos; a superpopulação de trabalhadores desempregados ou subempregados – enfim a precarização extrema da força de trabalho.

Para além das polêmicas teóricas que esta questão gera, o que importa destacar aqui é que tais ações de sobrevida, no entanto, acabam por aumentar as crises sociais e carregam alto poder de mobilização social, estimulando crises sociais que o capital precisa conter, entre outras medidas, reformulando o conceito de democracia liberal, tornando-a mais limitada e, claro, controlando a educação da juventude.

Note-se, então, que a introdução de novas tecnologias no processo de trabalho é uma necessidade intrínseca às crises do capitalismo. É pela introdução de novas tecnologias que ele impulsiona a economia, potencializa a lucratividade e reduz temporariamente o impacto das crises econômicas. Em contraposição, na outra ponta, aumentam as crises sociais, a miséria, os conflitos e, com isso, contraditoriamente, as reais possibilidades de mobilização social. Este confronto também motiva a emergência das políticas neoliberais e suas formas de conceber o Estado, bem como estimula o fortalecimento da extrema direita e o desejo de um novo estado de direito que limite a democracia liberal que passa a ser responsabilizada pelos problemas existentes.

Como consequência, ataca-se a ideia de um Estado inclusivo, o qual, pelo menos até recentemente, era chamado periodicamente a intervir para prover alguma compensação à permanente exploração a que os trabalhadores são submetidos, criando políticas inclusivas.

Tratava-se de aliviar as tensões sociais. No entanto, mesmo o pouco que se fez nestes momentos, acabou por levar a um aumento dos custos fiscais decorrentes desta estratégia, agravado pelo baixo desempenho do capital global.

Como aponta Wallerstein, as ações da social-democracia destinadas a incluir mais gente, criaram mais contradição: uma maior inclusão aumentava o tamanho do Estado e exigia mais impostos, derrubando a competitividade e os lucros. O inverso, a não inclusão, diminuía o Estado, reduzia impostos, permitia atender às demandas capitalistas, mas gerava mais conflito social.

Tudo isso em um quadro em que o capitalismo precarizava constantemente a força de trabalho a cada inovação tecnológica que introduzia para postergar suas crises. Vender mais barato e ampliar mercados em meio à crise, implicou em externalização de custos, desoneração do capital e diminuição de impostos, desregulamentação dos mercados globais, o que é incompatível com financiar a inclusão.

Este cenário rapidamente apresentado não estaria minimamente completo se não incluíssemos os danos que o capital faz à ecologia global pelo processo de acumulação ilimitado e pela externalização crescente do custo ambiental. Aqui, nosso tempo acabou e as ações necessárias são imediatas. Na medida que a acumulação não tem fim, cresce o garimpo de matérias primas, a mineração, a extenuação da terra por fertilizantes, o desmatamento, entre outras agressões sistemáticas à natureza que assistimos todos os dias.

Estas são algumas das motivações pelas quais, hoje, uma coalisão de conservadores e liberais – cada um com seu projeto - tenta implementar uma mudança no estado de direito, limitando o alcance da democracia liberal, travando instituições que possam opor-se a tais mudanças, de forma a deter a tomada de consciência do  esgotamento da ordem social proposta pelo capital. Neste contexto, em aliança com grandes empresários que a financiam, esta coalisão implementou um agressivo programa de divulgação de suas ideias através de organizações sociais, fundações privadas, institutos, acadêmicos[9] e até a criação de universidades dedicadas à sua difusão.

E claro, ela disputa a educação regular da pré-escola até a pós-graduação. Uma disputa que visa destruir a educação pública de responsabilidade do Estado transferindo-a para empresários e sacerdotes ou delegando-a aos próprios pais na forma de ensino domiciliar – tudo regado a dinheiro público que deveria estar financiando a escola pública. Está em jogo, sim, a expansão de mercado, mas igualmente está em jogo o controle ampliado da formação da juventude.

Conservadores e neoliberais têm um projeto e o estão implementando em escala global, apesar de suas diferenças. Eles estão radicalizando suas teses e nos forçam a defender uma democracia liberal pensada há 200 anos e que não conseguiu levar a cabo suas intenções de inclusão e bem-estar para todos. Neste processo, conservadores e neoliberais se apresentam à população como se fossem “revolucionários” culpando as instituições atuais pelos problemas que a população padece e os defensores da democracia liberal passaram a ser tachados de representantes de algo considerado ser a fonte dos problemas sociais.

Como romper esta armadilha? Esta luta exige, como aponta Wallerstein[10], um projeto de sociedade comprometido com a radicalização da igualdade e da democracia, que se contraponha à radicalização excludente das teses dos conservadores e liberais que pretendem uma perpetuação do sistema do lucro baseado na lógica do capital, fonte real dos nossos problemas. O moderno é o capital e suas crises, o pós-moderno é a superação do capital.

Isto significa que juntamente com defender a democracia liberal como um patamar mínimo de democracia e bem-estar, porque se for menos que isso entramos no campo da barbárie, devemos igualmente declará-la insuficiente para os propósitos de uma humanização coletiva radical: necessária, sim, mas insuficiente.

Mas qual a relação desta análise com a questão da formação dos profissionais da educação, afinal o nosso tema? Se taticamente a democracia liberal nos interessa, estrategicamente precisamos pensar além e pautarmos a luta nos dois planos. Isso exige projetos concretos de superação do capital.[11]

As escolas, queiramos ou não, veiculam finalidades educativas. Estamos formando a juventude agora. Tais finalidades educativas que orientam todo o currículo são expectativas extraídas de uma determinada forma de concebermos a sociedade que temos ou que desejamos. Quando pensamos, portanto, na formação do magistério, é importante indagar, antes, que tipo de sociedade queremos construir e, consequente, que tipo de escola precisamos para isso, pois são estas decisões que orientam a própria formação do magistério.

Creio ter deixado claro, antes, que estamos vivendo uma época que alguns teóricos entendem ser o ocaso do capital. Ninguém sabe quanto tempo isso pode demorar, mas sabe-se que teremos que passar por ele e, como alerta Wallerstein, não há nenhum fatalismo nisso já que não se pode assegurar que a solução para o ocaso do capital seja melhor que o próprio capital. Isso significa, portanto, que em meio as crises teremos que lutar e ao mesmo tempo construir uma alternativa melhor.

Isto exige, então, uma visão crítica das finalidades educativas que estão sendo impostas pelo sistema-mundo do capital às escolas e demanda uma identificação de quais são as nossas finalidades educativas destinadas a preparar, especialmente a juventude, para lutar e construir alternativas. Isso deve ainda dar base para que se pense qual a forma e conteúdo da organização escolar que precisamos, permitindo visualizar as demandas necessárias para a formação do magistério[12].

É por isso que a educação é um campo perigoso na visão de conservadores e liberais e tem que ser acompanhada de perto, sempre que possível colocada fora do controle do Estado e nas mãos de agentes seguros ideologicamente, como os empresários e os sacerdotes.

O percurso da política educacional envolve definir finalidades educativas, pensar a organização do trabalho na escola e, finalmente, pensar a formação do magistério. E com todo respeito ao trabalho e à memória de Paulo Freire, os tempos são outros e precisamos, preservando os elementos mais radicais de Freire, ir além. Esta é uma responsabilidade que é nossa e que não podemos cobrar dele.

Em um quadro de crises recorrentes e cada vez mais graves, qual o papel que os profissionais da educação são chamados a cumprir tendo como horizonte a construção da democracia e a luta por uma referência pós-capitalista?

Esta tarefa não pode ser enfrentada sem que tenhamos uma compreensão das ações que o capital está colocando em curso nas escolas para controlar os processos educativos. O neoliberalismo não é apenas um conjunto de reformas econômicas. Ele é uma teoria sociopolítica, com bem demonstra Biebricher[13]. Embora opere por transferência da atividade educativa para agentes confiáveis, ele é mais do que os processos de privatização em curso. É um modo de vida.

Nos limites de nosso tempo, gostaria de explicitar apenas dois núcleos conceituais que são importantes para entendermos este processo.

O primeiro núcleo refere-se ao avanço do que agora podemos chamar, na esteira do conceito de Saviani[14] sobre a pedagogia tecnicista, de um “neotecnicismo digital” que, além da virtualização da ação pedagógica, se conecta com a teoria da responsabilização por metas e com a teoria da escolha pública[15]. Juntas, elas reformulam os espaços educativos.

Pela teoria da responsabilização, apoiando-se no controle da avaliação e nas novas tecnologias de informação e comunicação, amplia-se o controle sobre os objetivos, conteúdos e processos educativos, incorporando no trabalho pedagógico a virtualização dos processos.

Pela teoria da escolha pública, colocam-se em marcha variados processos de privatização da educação (por dentro ou desde fora). Não devemos nos iludir. Aqui, o objetivo não é “melhorar a escola pública”, mas extinguir a escola pública a partir do deslocamento dos recursos públicos que a financiam para setores confiáveis.

O segundo núcleo conceitual diz respeito à meritocracia que incorpora as finalidades educativas oriundas do padrão sócio-político neoliberal, onde o indivíduo é colocado como o gestor da sua própria acumulação de competências e habilidades, com as quais deve se apresentar ao mercado concorrencial.[16] Com esse objetivo, aparecem as “disciplinas” que procuram “ajudar” os jovens a elaborar um “projeto de vida” e a se transformarem em supostos “empreendedores” como se eles fizessem parte dos ganhadores do sistema e não fossem, de fato, candidatos a trabalhadores precarizados. Um sofisticado processo de cooptação dos trabalhadores.

O que está em jogo é introduzir na formação da juventude, a lógica da concorrência e da meritocracia, estabelecendo que, de agora em diante, cada um é responsável por si mesmo, hegemonizando outra justificativa social – ou seja, da lógica da meritocracia, entendida como uma hierarquia social construída pelo acúmulo de mérito pessoal.

Este contrato neoliberal, contrapondo-se a uma visão social da liberdade, privatiza a liberdade como um fenômeno pessoal e individual, não sendo relevante se as demais pessoas são ou não igualmente livres. Nega-se a liberdade como um fenômeno social, coletivo e emancipatório exercitado em ambiência democrática. Como consequência, nesta visão, não há sociedade, mas sim indivíduos jogando o jogo da vida – empreendedores e jogadores. Uma sociedade na qual todos “participam” segundo seu próprio mérito e sorte.

É por isso que os neoliberais falam em ampliar a liberdade e não em ampliar a democracia, pois esta implica em tomada de decisões coletivas. Neste sentido, a tese pós-moderna de que o coletivo é um ente opressor é algo que atende plenamente às necessidades do neoliberalismo, que enfatiza o indivíduo e teme o coletivo organizado.[17]

A meritocracia esconde que, frente às crises constantes do capital e às possibilidades crescentes de desemprego e de subemprego, esta formulação permite que as elites blindem os melhores e mais significativos postos de trabalho para si, criando uma exigência meritocrática que somente elas, as elites, podem atender, fazendo uso de suas condições socioeconômicas, como aponta Markovitz[18]. Com isso, restringem a mobilidade social e explicam a desigualdade social como opção pessoal ou “falta de empenho” pessoal.

Constrói-se na juventude, dessa forma, a ideia de que cada um é responsável por si mesmo, minando a própria ideia de um Estado inclusivo e, pelo oposto, fortalecendo a ideia de um Estado mínimo para o social e máximo para o capital, criando-se a crescente ambiência social de violência e de vale tudo concorrencial que estamos vivendo.

Para implementar este projeto, o capital precisa criar uma nova materialidade nas escolas, fortalecendo as teses educacionais neotecnicistas que levam a uma ampliação do controle técnico e político da escola, fazendo uso da adição de tecnologias da informação e da comunicação disponíveis (p. ex. ensino híbrido). Isso conduz à introdução de plataformas de aprendizagem e sistemas informatizados de armazenamento de dados e controle.

Este movimento faz parte da mercantilização da própria “sociabilidade” em geral, como mostra Huws[19] , agora também mediada por tecnologia, sob controle de grandes corporações transnacionais – as big techs.

Nas palavras de Huws, mais aspectos da vida são agora incluídos no mercado, ou pelos menos aqueles aspectos que interessam para gerar lucro, e que antes se encontravam fora dele. Isso inclui “a biologia, arte e cultura, serviços públicos e a sociabilidade” (p.7).

Neste processo de mudança, “os trabalhadores criativos foram convertidos em “produtores de conteúdo” (p. 8). E continua: “A colonização da sociabilidade pelo mercado não só gerou uma nova fonte de lucro, mas também penetrou na estrutura da vida social [das pessoas], minando a base da futura solidariedade.” (p. 11)

Huws acrescenta que “a comunicação social agora envolve, com efeito, o pagamento de um dízimo a essas empresas [que fazem a mediação tecnológica] por parte de todas as pessoas ao redor do mundo que tenha um contrato de telefone celular ou uma conexão à internet em casa – um número que continua a crescer exponencialmente” (p. 13).

Como também salienta Weiner[20]: “[As alterações globais] no trabalho dos trabalhadores culturais e do conhecimento e aqueles do serviço público envolvem: a intensificação ampliada do trabalho; a diminuição da autonomia e da criatividade; a padronização dos processos de trabalho; e pressão para se “desempenhar de acordo com padrões cada vez mais rigorosos estabelecidos de cima para baixo, definidos em termos de protocolos, metas de desempenho e padrões de qualidade” (p. 40).

O impacto destas concepções de alinhamento já se faz sentir na educação brasileira com a edição das Bases Nacionais Comuns – seja a Curricular, seja a de Formação de Professores com a finalidade de alinhar as escolas e universidades. Têm a finalidade de estabelecer “padrões de cima para baixo” combinados com “metas de desempenho” e avaliação.

Este aprisionamento das escolas afasta quaisquer possibilidades de que a resistência a este processo seja feita a partir de insurgências voluntaristas e mobilizações sem direção clara.[21]

Note-se aqui a presciência dos educadores da Comissão Nacional de Reformulação dos Cursos de Formação dos Educadores que, nos idos de 1990, resolveram sistematizar a experiência de luta pela formação do magistério, ocorrida entre 1975 e 1999 e que já sofria os efeitos iniciais das políticas neoliberais, e optaram corretamente por consolidar seus avanços transformando aquele movimento inicial, e de certa forma informal, em uma associação, a ANFOPE, e seu plano de luta consubstanciado em uma Base Comum Nacional para a formação, como âncora de uma Política Nacional de Formação dos Educadores.

Este processo está registrado nos documentos dos encontros nacionais realizados em 1988 e em 1990, respectivamente o 4º. e o 5º. Encontro, e é interessante ver como os elementos da política neoliberal, que se ampliaram ao longo destas últimas décadas, já eram debatidos, como aponta o documento de 1992, no 6º. Encontro da ANFOPE. Veja-se, por exemplo, o tópico “Algumas reflexões sobre a crise de acumulação e suas implicações para o Brasil, a escola e a formação do educador”, naquele documento.

Aqui peço licença para um breve excurso.

Nilda Alves, minha colega de luta, referiu-se a um documento que ela chamou de brilhante escrito por mim para o 5º. Encontro, penso eu. A bem da História, é preciso complementar e dizer, e isso cabe a mim, que este documento brilhante não foi minha criação e que atuei como um mero “escriba” que perambulava por este país em encontros e seminários estaduais ouvindo e sistematizando o ouvido.

A criação da ANFOPE e seu documento, se brilhante foi, deve isso à qualidade da atuação daqueles que lutaram entre 1975 e 1999 nos Estados e que produziram conhecimento e perceberam a fragilidade de se manter aquele movimento sem uma estrutura organizacional formal e sem lastro financeiro. Cada encontro realizado implicava em passar o chapéu em várias universidades para que pudesse ser realizado, criando uma dependência que punha em risco o processo de luta. Creio que Nilda Alves concordará com esta minha avalição.

Mas, voltemos ao nosso tema.

A presciência destes lutadores permitiu que em 90 se consubstanciassem os avanços teóricos e práticos obtidos no período precedente e se estabelecesse um “instrumento de luta”: a base comum nacional, já percebendo a chegada das políticas neoliberais.

Esta base deveria ser entendida como uma “pauta mínima comum”, um instrumento de resistência contra a degradação da profissão, que poderia ser complementada pelas variadas instituições de ensino a partir de suas especificidades. Não havia, nela, uma intenção normativa de ordem curricular. Este instrumento de luta continuaria como uma referência e atravessaria as décadas seguintes fornecendo uma ancoragem para os embates e para a elaboração de uma Política Nacional de Formação dos Educadores de caráter não só nacional, mas também global, atingindo todas as instituições formadoras (Escola Normal, Licenciatura em Pedagogia e demais Licenciaturas).

Portanto, ao recusar a Base Nacional Comum de Formação do MEC, a ANFOPE o faz a partir de sua Base Comum Nacional e de seu entendimento do que seja uma Política Nacional de Formação dos Educadores e, neste sentido, diferencia-se de outras posições que defendem a ausência completa de qualquer Base.

As políticas públicas neoliberais agora estão em alta e nada permite afirmar com segurança que não vão continuar a moldar a educação brasileira – apesar do fracasso econômico do neoliberalismo. Agrava-se o processo de luta face ao aprisionamento das escolas por estas políticas que agora dão um grande salto com a introdução do chamado ensino híbrido. Por ele, plataformas on line de aprendizagem expropriam as funções básicas do professor convertendo seu trabalho vivo em trabalho morto dentro de softwares comandados por algoritmos.

Esta desqualificação da formação do professor, abre as portas também para a desprofissionalização da atividade do magistério e, por este caminho, destroem-se suas entidades associativas, especialmente os sindicatos, deixando cada professor à sua própria sorte. Este processo, forma a base da uberização do magistério, já avançado no setor privado.

Agora, o controle da escola é possível à distância acabando com o âmbito privativo da relação professor-estudante na sala de aula, antes sob autoria destes. O conteúdo desta relação é expropriado, mercantilizado e posto sob controle virtual mediado por tecnologias. Uma série de controles são potencializados com a acessibilidade imediata ao processo de ensino que ocorre no interior de uma sala de aula.

Isso torna crítico que se lute contra uma concepção tecnicista da educação voltada para a supremacia do controle de processos e técnicas sobre o professor e que necessita para ser operacionalizada, simplificar e estreitar a atividade educativa.

Este são os desafios que teremos que pela frente.

Um processo de enfrentamento deste cenário de aprisionamento das escolas no contexto de uma crise de acumulação persistente do capital, exige que avancemos em nossa conceituação do que deva ser uma educação com qualidade social que humanize tanto o ser humano como a sua relação com a natureza, em nosso tempo.

Seu horizonte, no entanto, é a construção e o exercício de um novo padrão sociopolítico que nos mobilize, por contra-regulação, para caminharmos em direção a uma sociedade pós-capitalista.

Não haverá qualidade social mais humana para todos sob o capital. Não há como tornar o capital mais humano, mais humanizado. Sua lógica é a da concorrência e da competição sem limites, que vai se agravando pelas crises sucessivas.

Portanto, no entendimento do que seja “qualidade social”, a palavra-chave é “social”. É ela que qualifica a qualidade. Mas ela não é neutra. Isso significa que a qualidade social deve ganhar sentido como compreensão e superação das relações sociais vigentes, na compreensão das implicações éticas e filosóficas destas relações sociais portadoras de desigualdades objetivas e de desumanidade.

Vale dizer que são as relações sociais entre as pessoas as portadoras de sentidos de humanização ou desumanização, são portadoras de reconhecimento ou de exclusão, pois tais relações expressam o próprio processo de produção da vida na sociedade atual.[22] Portanto, esclarecer as relações sociais vigentes (e sua mutação histórica) é essencial, não só como uma dialética substantiva, mas inseridas em um projeto histórico de superação da era do capital.

Humanizar a educação significa, então, fazer uma crítica das atuais relações sociais e, dada a impossibilidade das atuais relações sociais irem além da exploração dos seres humanos e da natureza, isso também significa, por oposição, lutar e construir novas relações que radicalizem a igualdade e a democracia para além da democracia liberal vigente, incapaz de produzir humanização suficiente para todos. Como afirma Shulgin[23], a luta não é nosso desejo, é uma imposição que os que querem deter o desenvolvimento histórico nos colocam. Não é nossa escolha e nem algo para ser comemorado - não se pode obter tudo só pela luta. “É preciso também saber construir.”

A democracia liberal que somos obrigados a defender hoje dos ataques neoliberais e de conservadores é bom lembrar, é apenas um patamar mínimo de democracia e sua defesa só faz sentido se for para superarmos esta democracia por uma democracia de tipo superior que radicalize a igualdade e a democracia participativa.

Humanização, portanto, não é uma categoria abstrata, mas é o exercício concreto de humanidade que se dá na organização da vida material para além do reconhecimento do outro e da diversidade e que conforma as relações entre as pessoas. A fonte de desumanização contemporânea está nas relações sociais que sustentam a geração de valor sob o capital, sempre relações de exploração e dominação.

Sem a superação do capital, não há ampliação possível da humanização, entendida esta como uma humanização coletiva. Portanto, falar em qualidade social mais humana sem identificar a origem da desumanidade nas próprias relações sociais capitalistas, não indica qual o alvo de luta e nem as formas de luta. É preciso assumir que as lutas atuais são, então, lutas anticapitalistas, lutas pelo esgotamento e superação das relações sociais desumanizadoras criadas pela vida sob o capital – incluídas aí as desigualdades de gênero, de classe, de raça entre outras[24]. É neste campo que a definição das finalidades da educação que nos interessam têm que ser colocadas.

As consequências disso para a educação são claras. Ou seja, uma educação com qualidade social e mais humana é aquela que – guiando-se por uma matriz formativa mais ampla, que inclui o acesso ao conhecimento acumulado e, portanto, às ciências e às artes, e guiando-se igualmente pela crítica da organização interna das escolas (que na escola atual reproduz os princípios da organização social verticalizada) – é uma qualidade social que prepara as lutas por uma sociedade de outro tipo, onde a igualdade e uma democracia de tipo superior, portanto baseada na participação e construção coletivas, apontam para um tipo de vida para além da geração e acumulação de valor ilimitado e desigual, e ensaiam novas relações sociais superadoras da era do capital, nos limites possíveis da luta.

Educar para a humanização, então, para além do necessário domínio do conhecimento das ciências e das artes, é ter uma escola que permita que os estudantes possam construir esta crítica das relações sociais vigentes e participar, já durante sua formação, do exercício de relações democráticas participativas, para além da representação, com ênfase no trabalho coletivo e com participação na construção da própria vida escolar. Isso permitirá que a juventude seja formada com uma forte disposição para valorizar uma atuação democrática, igualitária e participativa. Uma escola como esta já existe, concretamente, nos movimentos sociais[25].

 

Penso que estes são alguns dos elementos que podem dar base à contribuição da ANFOPE e das demais parceiras deste evento, para a construção de uma agenda que vise a retomada da democracia, nos termos aqui defendidos. Não exaure as questões, mas dado que o âmbito da ANFOPE é o da formação dos profissionais da educação, outros aspectos certamente serão tratados por outras entidades que, pela sua especificidade, podem melhor equacionar aqueles aspectos.

Uma agenda para a ANFOPE faz interface com a luta geral da área da educação e da sociedade, mas aqui me limito aos aspectos que afetam mais diretamente a formação dos profissionais da educação e seu exercício na profissão.

 

1.               A ANFOPE deve promover a formação de um magistério comprometido com a modificação das práticas escolares atuais, na perspectiva de que o relacionamento com as novas gerações que chegam às escolas seja cada vez mais baseado na gestão democrática da vida da escola e da sociedade. Democratizar as relações internas entre professores, estudantes e a própria gestão das escolas é um exercício inadiável para induzir o avanço de processos democráticos na sociedade como um todo a partir da formação dos estudantes, e ajudar a conter políticas antidemocráticas e de discriminação. Isso não garante a transformação social, mas constitui uma base formativa essencial para a juventude.

Frente ao avanço das políticas autoritárias, meritocráticas e individualistas da coalisão liberal/conservadora é fundamental estimular as escolas a desenvolver um padrão sócio-político alternativo, voltado para a auto-organização dos estudantes, tanto pessoal como coletiva, que aponte para a solidariedade e prepare processos superiores de democratização participativa. Esta tarefa de exercício democrático-participativo é urgente e se soma à tarefa imprescindível do domínio do conhecimento sistematizado.

2.               A ANFOPE deve lutar para que as agendas das entidades da educação proponham e consolidem instrumentos legais que alicercem formas de gestão democrática nos sistemas e nas escolas como caraterística distintiva do próprio conceito de escola pública.

Isso inclui fortalecer os Conselhos Municipais de Educação; os Fóruns Municipais de Educação e o Conselho de Acompanhamento do FUNDEB, bem como valorizar os Conselhos das Escolas – entre outros instrumentos de gestão democrática – de forma a definir como “escola pública” aquela, e apenas aquela, que é gerida por estes instrumentos públicos de gestão e atende a todas as exigências legais das escolas públicas (estatais).

Não pode ser entendida como “escola pública” aquela que não se subordina às regras e instrumentos de gestão democrática. Assim, não estão incluídas nesta denominação as escolas privadas ou escolas públicas de gestão privatizada - em suas várias formas -, as quais respondem às suas respectivas mantenedoras e, portanto, não têm uma gestão pública e democrática nos termos definidos.

À escola pública, assim definida, devem ser exclusivamente destinados os recursos públicos, pois ao serem facilitados às escolas privadas ou de gestão privada, desfinanciam a escola pública e prejudicam a qualidade da educação dos estudantes nela matriculados.

3.               A ANFOPE deve condenar todos os processos de privatização da educação pública em suas variadas formas (vouchers, contratos de gestão, contratos de impacto social e parcerias público-privadas) e apontar para o fortalecimento da educação pública de gestão pública. Público e privado são categorias mutuamente excludentes. Por definição, público visa o bem público, comum, e privado visa o bem particular daqueles que são proprietários ou organizadores. O privado tem “por obrigação” gerar lucro (mesmo que sob a forma de organizações “sem fins lucrativos” – uma pura questão de contabilidade), o público visa garantir direitos e atender ao interesse público e não de acionistas.

4.               Também deve-se incluir em sua agenda a luta pela eliminação de testes censitários de avaliação de larga escala (nacionais e estaduais) na educação, que levem a ranqueamentos ou a consequências associadas a meritocracia (bônus ou punições) para professores e estudantes. As avaliações de larga escala, quando existirem, devem ser sempre amostrais e nunca censitárias.

5.               Uma das medidas que mais potencializam a ação do magistério em sua tarefa de educar os estudantes é a diminuição do número de alunos em sala de aula, a começar por escolas em áreas de risco. Deve-se, portanto, apontar para a redução do tamanho das turmas de estudantes nas escolas e não para a sua massificação a partir da introdução de plataformas de aprendizagem on line.

6.               Em defesa dos pequeninos, a ANFOPE deve apoiar as entidades que lutam por recusar processos de escolarização na educação infantil que antecipem a educação fundamental e desrespeitam o desenvolvimento infantil, bem como deve recusar a introdução de plataformas on line de aprendizagem especialmente nesta fase e impedir avaliações de aprendizagem que não sejam as conduzidas pelos próprios professores e escolas.[26]

7.               A educação deve ser um espaço de diversidade de ideias não sujeito a mordaças que visem eliminar a liberdade intelectual dos docentes e estudantes durante seu percurso formativo. Neste sentido, a ANFOPE deve defender a eliminação de dispositivos que permitam a militarização de escolas públicas e apoiar a criação de mecanismos efetivos de proteção da democracia no espaço escolar.

8.               Igualmente deve opor-se aos processos de padronização da educação os quais, associados à avaliação de larga escala censitária, conduzem à eliminação de experiências inovadoras e à imposição de padrões culturais arbitrários que marginalizam, excluem e além disso, que destroem especificidades de culturas locais, em especial na educação dos povos do campo. 

9.               A ANFOPE deve lutar pela revogação da Base Nacional Comum Curricular atual (fundamental e médio), bem como da Base Nacional Comum de Formação do magistério do MEC, substituindo-as por outras construídas democraticamente com base em um conceito de formação humana alargado e não restrito a competências e habilidades, e ainda propor a revogação da Lei da Reforma do Ensino Médio. Como aporte a este processo de democratização das diretrizes da formação dos profissionais da educação, a ANFOPE deve lutar para garantir que sua concepção de Base Comum Nacional e sua Política Nacional de Formação de Educadores esteja contemplada na formação inicial e continuada.

10.         Deve ainda, em conexão com os sindicatos e confederações do magistério, lutar contra a desprofissionalização dos profissionais da educação, assegurando condições adequadas para sua formação teórica e prática nos termos de sua Base Comum Nacional, bem como apoiar a luta pela obrigatoriedade do pagamento do piso salarial. 

11.         Como mecanismo de proteção da juventude, a ANFOPE deve lutar pela regulamentação das condições e do número máximo de horas que os estudantes podem ser envolvidos em plataformas digitais de aprendizagem nas escolas (tablet, computador, celular, etc.), a partir de pesquisas e requisitos internacionais de proteção à saúde e bem-estar.

12.         Finalmente, deve lutar pela exigência de transparência por parte dos produtores de plataformas de aprendizagem online em relação aos objetivos, planejamento dos algoritmos decisórios, certificação de ausência de eventuais processos internalizados de exclusão e/ou discriminação (conceitual ou práticos) ocultos em algoritmos e em trilhas internas de aprendizagens, bem como exigir evidências em estudos em campo.

 

Estes pontos aqui reunidos elencam o que considero ser algumas das contribuições possíveis da ANFOPE e do magistério em exercício neste momento, para alavancar uma retomada democrática rumo à superação da democracia liberal.



[1] Professor Titular aposentado da Faculdade de Educação da UNICAMP. Texto baseado em apresentação feita na sessão de encerramento do XIII Seminário Nacional da ANFOPE – Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação - em setembro de 2022. Disponível em www.avaliaçãoeducacional.com.br. Reprodução autorizada.

[2] Wallerstein, I. (2011) The modern Word-system IV: centrist liberalism triumphant, 1789-1914. Berkeley: University of California Press.

[3] Eatwell, R. and Goodwin, M. (2018) National Populism: the revolt against liberal democracy. Penguin Books: UK; Deneen, P. (2019) Why Liberalism failed. New Haven and London: Yale University Press. (Há tradução em português.)

 

[4] Slobodian, Q. (2018) Globalists: the end of the empire and the birth of neoliberalism. Cambridge: Harvard Univesity Press. Já há tradução no Brasil.

[5] Roberts, M. (2022) A world rate of profit: important new evidence. Disponível em https://thenextrecession.wordpress.com/2020/07/25/a-world-rate-of-profit-a-new-approach/ ; Roberts, M. (2018). Marx 200: a review of Marx's economics 200 years after his birth. London: Lulu.com Ed.; Roberts, M. (2016). The long depression: how it happened, why it happened and what happens next. Chicago: Haymarket Books; Carchedi, G. and Roberts, M. (2018) World in Crisis: a global analysis of Marx’s law of profitability. Chicago: Haymarket Books.

Ver também: Prado, E. (2022) A estagnação e o futuro da economia capitalista no Brasil. Disponível em https://eleuterioprado.blog/2022/01/30/a-estagnacao-e-o-futuro-da-economia-capitalista-no-brasil/.

[6] Wallerstein, I. (1998). Utopística o las opciones históricas del siglo XXI. México: Siglo XXI.

[7] Mészáros, I. (2009). A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo; Streeck, W. (2016). How will capitalism end? Essays on a failing system. London: Verso; Wallerstein, I.; Collins, R.; Mann, M.; Derluguian, G. and Calhoun, C. (2013) Does Capitalism have a future? New York: Oxford University Press.

[8] Marx, K. (1984) O Capital. Vol. III, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural. Ver Seção III.

 

[9] Ver a conexão dos irmãos Koch com o desenvolvimento da teoria da escolha em MacLean, N. (2017) Democracy in Chains: The Deep History of the Radical Right’s Stealth Plan for America”. New York: Penguin.

 

[10] Wallerstein, I. (1998), Idem; Wallerstein, I. (2002) Após o liberalismo: em busca da reconstrução do mundo. Petrópolis: Vozes.

[11] A discussão aqui está focada na questão da escola e seus profissionais como local de disputa, aprisionado que está pela coalisão conservadora/liberal. Não se examinam outros aspectos da luta.

[12] Ver Shulgin, V. (2022) Fundamentos da educação social. SP: Expressão Popular.

[13] Biebricher, T. (2018) The political theory of Neoliberalism. Stanford: Stanford University Press.

[14] Saviani, D. (1983). Escola e democracia. São Paulo: Cortez Ed./Autores Associados. Ver também Freitas, L. C. (1992). Conseguiremos escapar do neotecnicismo? Em M. B. Soares, S. Kramer, & M. Ludke, Escola Básica. Anais da VI Conferência Brasileira de Educação (Vol. I, pp. 147-157). Campinas (SP): Papirus.

[15] Analiso o impacto destas duas vertentes em Freitas, L. C. (2018) A reforma empresarial da educação: nova direita, velhas ideias. São Paulo: Expressão Popular.

[16] Ver Chaui, M. (14 de setembro de 2018). Seminário Internacional Ameaças à Democracia e à Ordem Multipolar. Fonte: Fundação Perseu Abramo: https://youtu.be/QDDVZsU2AvU .

[17] A apropriação das teses pós-modernas pelo conservadorismo pode ser encontrada nos estudos de McManus, M. (2020) What is post-modern conservatism? Essays on our hugely tremendous times. UK: Zero Books; e McManus, M. (2020) The rise of post-modern conservatism: neoliberalism, post-modern culture and reactionary politics. Vancouver: Palgrave Macmillan.

[18] Markovits, D. (2019) The meritocracy trap: How America’s Foundational Myth Feeds Inequality, Dismantles the middle class, and devours the elite. New York: Penguin Press. Há tradução disponível. Ver também Sandel, M. J. (2020) A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum? Rio: Civilização Brasileira.

[19] Huws, U. (2014). Labor in the global digital economy. New York: Monthly Review Press.

[20] Weiner, L. (2021) Heads up! Chins down! Resisting the New Bipartisan Neoliberal Project in Education. New Politics. Disponível em https://newpol.org/heads-up-chins-down-resisting-the-new-bipartisan-neoliberal-project-in-education/

[21] O pós-modernismo é expressão da lógica cultural deste capitalismo tardio ancorado no relativismo (muito bem captado pela direita conservadora e liberal nos seus “fake news”) e que a reduziu “à doxa televisiva e, mais recentemente, das redes sociais” (Silva, 2022: in Azzarà, 2022).  Ver: Azzará, S. G. Adeus ao pós-modernismo: populismo e hegemonia na crise da democracia moderna. Florianópolis: Insular; Jameson, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Atica; McManus, M. (2020) The rise of post-modern conservatism: neoliberalism, post-modern culture and reactionary politics. Vancouver: Palgrave Macmillan.

 

[22] Rubin, I. I. (1980) A teoria marxista do valor. São Paulo: Brasiliense.

[23] Shulgin, V. (2022). Idem.

[24] Aqui será necessário vencer o viés pós-moderno que desgarra a questão das diferenças examinando-as fora dos limites estruturais impostos pelo capital, até porque o próprio neoliberalismo em sua versão “light” e da “terceira via” já incorporou este debate da diversidade. Ver sobre isso: Fraser, N. (2019) The Old Is Dying and the New Cannot Be Born: From Progressive Neoliberalism to Trump and Beyond. New York: Verso; Oliveira, S. B. (2022) Contribuições de Sharon Gewirtz para uma análise das políticas educacionais baseada na justiça social. Disponível em http://www.curriculosemfronteiras.org/vol22articles/oliveira.pdf .

[25] Ver Caldart, R. S. e outros (2014). Escola em Movimento. São Paulo: Expressão Popular.

 

[26] Ver Desmurget, M. (2022) A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestigio.