domingo, 28 de fevereiro de 2021

Educação mercadoria e mercadoria educação


 A Cogna (gigante da educação privada) e a Eleva, fizeram acordo de mais de meio bilhão de reais, na última semana (clique aqui) dominando assim o mercado privado da educação básica. Se essa ação por si só não desperta na classe docente uma interrogação sobre as novas demandas da educação pública, inclusive reivindicada pelo maior acionista da educação privada no país, significa que há muito temos ignorado a função social da escola, qual seja, de formar a classe trabalhadora em condições de dominar os conhecimentos historicamente produzidos e com vistas à emancipação humana. Na medida em que grandes corporações adquirem com recursos milionários empresas de conhecimento, significa dizer, imediatamente, que esses conhecimentos serão privatizados. Portanto, não será dada a classe trabalhadora condições de se apropriar dos mesmos, e nem se quer minimamente, não a toa, a nova BNCC que de nova só tem a efetivação normativa nos currículos escolares, exclui de maneira muito clara o acesso ao conhecimento para a classe trabalhadora, secundarizando e até dispensando os conteúdos. Num discurso cínico e demagógico os idealizadores da BNCC, proprietários desses aparelhos privados de hegemonia (donos de grandes corporações educacionais), dos quais entram a Fundação Leman -proprietária da Eleva -, o Todos pela Educação, Instituto Natura, Fundação Itaú, entre muitos outros, afirmam que "o país sempre naturalizou desigualdades educacionais" em relação ao acesso à escola, à permanência dos estudantes e a seu aprendizado. Afirmam ainda que são amplamente conhecidas as enormes desigualdades entre os grupos de estudantes definidos por raça, sexo e condição socioeconômica de suas famílias. O que não dizem, contudo é porque para uma classe, a que domina, os conhecimentos continuam sendo base fundante de sua formação, enquanto para a classe menos favorecida apenas competências, em destaque as competências emocionais, para aceitar facilmente as contradições do mundo em que vivem?! O referido documento, reforçando a LDBN de 1996 enfatiza que a educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e da prática social, ou seja, muda mas quase nada, e ainda esconde a que mundo do trabalho se referem, o que não afirmam, no entanto é de que mundo do trabalho se trata, claro que temos uma pista, a única, trata do mundo do trabalho precarizado que vem sendo implantado nos países explorados pelo capital, onde o trabalhador não tem direitos, precisa dispor das ferramentas para o trabalho, não possui horas de descanso, ou seja, é a uberização* dos sujeitos, donos de suas ferramentas de trabalho, sem direito à saúde, férias, fundo de garantia, descanso remunerado, seguro acidente de trabalho e etc. É nessa lógica de precarização que a BNCC define o mundo do trabalho, sujeitos com o mínimo de conhecimentos científicos, apenas os rudimentos de leitura, escrita e cálculos matemáticos simples servindo como exército industrial de reserva ao capital. As propostas de formação elaborada por esses aparelhos privados de hegemonia, com aval do estado, uma vez que esses grupos incorporam e comandam os conselhos educacionais país afora é de exclusão do trabalhador de um mundo menos desigual, em que eles possam estar em pé de igualdade com os filhos da classe burguesa na hora de disputar vagas em postos de trabalhos ou em bancos de universidades, mas, principalmente de negar que os dominados se apropriem dos conhecimentos que os dominadores dominam. Diante desse agigantamento dos APHs** da educação básica é preciso que os educadores compreendam o significado e a importância de vencer a disputa pela posse dos conhecimentos e mais que isso pelo direito de transmiti-los aos filhos da nossa classe.

*Ricardo Antunes, no livro O privilégio da servidão, elaborou a categoria uberização do trabalho, por entender que esse momento em que se encontra a forma de exploração capitalista a palavra precarização já não dá mais conta de explicitar o nível de exploração e desvalorização da força de trabalho.

**Aparelhos Privados de Hegemonia

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

O dia em que Carlos Drummond de Andrade leu-me

 


A Flor e a Náusea 

Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta. 

Melancolias, mercadorias, espreitam-me. 

Devo seguir até o enjôo? 

Posso, sem armas, revoltar-me? 

Olhos sujos no relógio da torre: 

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

 O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera. 

O tempo pobre, o poeta pobre

 fundem-se no mesmo impasse.

 Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

 Sob a pele das palavras há cifras e códigos. 

O sol consola os doentes e não os renova.

 As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase. 

Vomitar este tédio sobre a cidade. 

Quarenta anos e nenhum problema

 resolvido, sequer colocado. 

Nenhuma carta escrita nem recebida. 

Todos os homens voltam para casa.

 Estão menos livres mas levam jornais

 e soletram o mundo, sabendo que o perdem. 

Crimes da terra, como perdoá-los? 

Tomei parte em muitos, outros escondi. 

Alguns achei belos, foram publicados. 

Crimes suaves, que ajudam a viver.

 Ração diária de erro, distribuída em casa. 

Os ferozes padeiros do mal. 

Os ferozes leiteiros do mal.

 Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

 Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

 Porém meu ódio é o melhor de mim. 

Com ele me salvo 

e dou a poucos uma esperança mínima. 

Uma flor nasceu na rua! 

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. 

Uma flor ainda desbotada 

ilude a polícia, rompe o asfalto. 

Façam completo silêncio, paralisem os negócios, 

garanto que uma flor nasceu. 

Sua cor não se percebe. 

Suas pétalas não se abrem. 

Seu nome não está nos livros.

 É feia. Mas é realmente uma flor. 

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

 e lentamente passo a mão nessa forma insegura. 

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se. 

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

 É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. 

(Carlos Drummond de Andrade)